segunda-feira, 12 de abril de 2010

Os outros

 É fácil, perante a foto de uma idosa, apelar aos sentimentos mais primários e despejar uma série de adjectivos. Seria bonito, mas cada vez mais inapropriado.
Apesar de todas as dificuldades, problemas, inerentes à idade, não posso deixar de pensar que ali está um ser humano, com todos os defeitos agravados. Compreendo que não posso generalizar. Estou a falar deste caso específico. Desta simpática senhora que me pediu para a fotografar. Só que ainda me lembrava de a ter visto a discutir com uma neta. E da forma como atacou a educação dada pelos pais. E criticou os modos da pequena. E lamentou a maneira de ela se vestir. E troçou de querer beber uma coca-cola. Em pouco tempo demonstrou tudo o que a irritava na neta. E era muita coisa. Transpareceu toda a raiva ali guardada, todas as frustrações, todos os medos. Não se preocupou com quem a rodeava, queria "magoar"/envergonhar a rapariga. Não deu conta que apenas mostrava o quanto era mesquinha.
Tirei a foto. O melhor que consegui. Porquê? Apenas porque acho que devo ser o melhor possível para com os outros. Qualquer um? Ainda não disse a ninguém que não a fotografava.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Portas fechadas

De tempos a tempos preciso de colocar obstáculos ao passado. Fechar uma porta, olhar em frente e abrir outra. As memórias não deviam tolher os meus passos.
Quando ainda era presente é que devia ter aprendido a lição. Perceber o que de bom e mau se tinha passado. Depois, seguir em frente. Mas não consigo, assim, tão facilmente. Há presentes que custam a passar a memórias. Insistem em perseguir-me pelo futuro adentro. É, nessa altura, que dá jeito uma porta. Um obstáculo. E tento proceder ao encerramento dessa recordação.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Comportamento incorrecto

Despedi-me das coisas e encarnei feito gato. Sem querer saber de obrigações, devoções ou paixões.Apenas o lado prático e vital das novas necessidades: comer, dormir, andar às gatas e preservar o meu território. Ao fim e ao cabo o que fazia enquanto ser humano, mas sob formas muito mais complicadas. Agora é a simplicidade de saber o que quero a cada instante. Sem ambiguidades. Tenho os meus amigos e os meus cantos preferidos. Só o meu gosto musical se alterou - gostava do John Coltrane e agora não consigo suportar aquelas notas altas. Paciência, abri os ouvidos para outros sons.
Passo a maior parte do tempo deitado ao sol. Preguiça, pensam os humanos com as suas complicações. A poupar forças, imaginam os outros gatos. A meditar, sei eu bem o que faço. E essa é a traição feita pelo Deus que me permitiu assumir o corpo de gato. Se penso começo com os meus problemas. A existência, a finalidade da vida, o que fazemos aqui na terra, qual o papel de cada um. São alguns dos vossos problemas, não são? Mas ainda tenho uma vantagem: o instinto em mim tem muita força e, quando começo a debater-me com problemas existenciais, basta passar uma gata que deita por terra todas as minhas teorias.
Tenho medo é de quando deixar de ligar às gatas para ficar a pensar. Aí volto a reencarnar como humano? Deus não me deve dar nova oportunidade, tenho de gerir este estado muito bem. Desculpem, tenho de ir. Vem ali um gato a entrar nos meus terrenos.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Viagem

Um barco parado é um convite à viagem. Interior, por este grande rio acima. Um rio de águas calmas, aconchegadas pela neblina, quase sem movimento. E a viagem começa.
Toda aquela serenidade, calmaria, convidava à reflexão. Uma paz enorme invade o viajante. Até que aquele cintilar surge como uma faca a rasgar o momento. Por segundos, mas é um golpe naquela quietude. E a viagem acaba.